No caminho escrevemos cartas ao Curupira. Aqui podes ler nossos sonhos, desejos e anseios. Também, é um convite a fazeres o mesmo. Aceita?
Entre Marinha Grande, Torres Vedras, Lisboa e Pombal,
na entrada da Primavera de 2025.
Hello CURUPIRA!
Estou a escrever-te uma carta para te atrair. Não é só para mim. Sigo em grupo.
Mãos nas mãos, com o meu grupo, deixámos as nossas omoplatas indicar o caminho que vai do coração à língua, saindo por de trás dos olhos para alcançar estradas e caminhos. Andamos em travessias, entregámos os nossos pés à terra batida, assentámos refúgios à noite, confiámos nas conversas à sombra das árvores, furámos a cidade, gingámos entre fronteiras... mas não te encontrámos.
Será que há por aí olhos que vêm melhor do que os nossos? Ouvidos que ouvem melhor do que os meus? Narizes que sentem mais? Outras formas mais subtis de te tatear? Temos procurado, aprendendo um bocadinho de todas e todos e todes os que encontramos.
Consigo compreender a tua necessidade de férias, num mundo tão pejado de caçadores. Antes de revelar-te a minha fraqueza, queria dizer-te que compreendo a tua. Está pesado, o mundo. Está tão pesado, que, às vezes, me esqueço de observar a maravilha de tudo o que existe. Mas é por isso mesmo que preciso tanto de ti. Podes aparecer, Curupira?
De repente, ocorre-me que estás mesmo aqui ao lado, que paraste a fazer uma sesta à beira do Rio e, sou eu, por tanto correr à tua procura que não te encontro. Ou então pode ser um problema temporal: estás aqui, mas num tempo tal, que não te vejo. Será que eu consigo juntar-me a esse tempo de maravilhamento, a esse tempo que contempla as formas que o vento desenha nas águas do Rio? E, de repente, talvez eu consiga ouvir as pistas do Rio, que está aqui desde sempre, e já te viu muitas vezes.
O Rio é testemunha? A terra é testemunha? Vou-te falar de perguntas que me fazem tremer por dentro. Desde onde vemos a floresta? Podemos esquecer? Toda a criança que vem ao mundo quer mergulhar nele? A escolha é nossa? O que ficará quando já não houver nada? Afinal, de que estou à procura? Encontramos sempre alguma coisa? É urgente? É urgente a ternura? É urgente ser selvagem? É urgente convocar o corpo? Há alguma coisa que não possamos perguntar?
Empurro o ar, esperando chegar até ti. Deixo-te prendas, com esperança que venhas buscar. Desequilibro-me com esperança que me agarres. Escondo-me numa ruga da terra. Gaguejo. Gaguejo e vacilo. Expludo numa dúvida todas as minhas partículas pelo ar, desintegro-me na procura, vou vendo tudo desfocado.
Vou falar-te da minha fraqueza. Suponho que é uma fraqueza de esquecimento. Dou-me conta, na hora de dormir, que passou mais um dia e eu não ouvi a história que o Rio tinha para me contar. Percebo no ocaso da tempestade, que me esqueci de ouvir a música das gotas de chuva. Aquele dia em que deixei esquecer (ou não tive coragem?) de subir uma montanha.
Estou à tua procura para me lembrares sempre. Para me dares coragem, claro.
Coragem para seguir o fogo que estala na minha cabeça. Coragem para conseguir fintar, enganar, estontear, todos os que me fazem acelerar ou não acreditar ou reagir sem meditar. E, às vezes, lembrar-me de deitar na beira do Rio. Fazer uma sesta e contemplar.
Grata, sempre, por existires, e com amizade,
tua, Joana.
Oi,
Tô aqui em Portugal. Seja lá o que isso quer dizer. Teve um tempo que me perdi de ti. Talvez pelo excesso de cidade no corpo, ou pelo acesso ao pensamento. Uma coisa que se transforma conforme a língua que falamos. É a mesma língua... Mas, também não é. É semelhante.
Durante toda a busca foi ficando evidente o encanto e o pavor das coisas que são semelhantes mas, não são a mesma coisa.
Me perder de ti, talvez, seja semelhante ao te perder. Sinto que esse perder já não é mais sobre, efetivamente, te encontrar. Tem aquela coisa: "Quem se esconde, no fundo, que ser encontrado" Será? Acho que não é o caso.
Já faz tempo que nos perdemos um do outro e talvez esteja aí o desejo de busca. É um movimento. Não está nem no encontrar nem no continuar perdido. Tá no entre e no que acontece quando há movimento.
Nos perdemos e silêncio.
Nesse movimento de ir te buscar me conecto com tanta coisa que eu gosto. Tive que me conectar com tanta coisa que detesto. Foi ficando claro o que o perder-se revela pr'além do próprio encontro.
Te procuro para me procurar. Te procuro para ver outra coisa. Não te procuro para te encontrar. Mas, também te encontro no fragmento da memória, da romantização, dos sonhos e das fúrias.
É feroz nos perdermos um do outro. E feroz abre o apetite.
Um beijo e um sinal de fumaça (claro).
Clara
Querido Curupira,
Onde estás?
Onde é que tá tu?
Um tatu poderia ajudar-me a te encontrar?
Sei que és esperto, e tens a floresta na palma das mãos. Por isso, se eu fizesse mil buracos de tatu e os camuflasse direitinho, sei que não caias nessa armadilha.
É mesmo muito mal vir da minha cabeça essa ideia parva, de chegar ao extremo, e pensar em fazer uma armadilha para te encontrar… Assim parece que és um bicho, um culpado de algo…
Essa é a fala de alguém que às vezes, beira o desespero de tanta preocupação.
Mataram a Irmã Dorothy, mataram o Chico Mendes, mataram os “homens da lei” que defendem as florestas, mataram os ribeirinhos, os povos originários… e com o mundo como está, cada vez mais voltado às ideias de poucos predadores ferozes que se alimentam somente das “verdinhas”, temo que a sua vida também esteja em risco…
Temo que a vida da humanidade esteja em risco…
E já que não há lei, dos homens ou da natureza, que pare esses predadores, creio que só uma força sobre-humana pode nos salvar.
Já que és essa força, precisamos de ti!
Acredito que só um “mistério” muito maior que nossa pequena existência nos faça abrir os olhos. Por isso confio em ti.
Sei que as florestas perdem seu espaço a cada dia, talvez por isso deves estar escondido, à espera da poeira baixar.
Mas, para já, te digo: essa poeira só vai aumentar, com as florestas ardendo para depois virarem pasto, e nós, já estamos sendo feitos ao bife antes mesmo da boiada passar e endurecer todo esse chão.
Estamos mesmo perdidos, e talvez, somente uma profunda conexão com a natureza possa ser a nossa solução…
Apareça, com seu mistério e magia, e nos inspire a encontrar a conexão com a natureza que há muito já foi perdida dentro de nós.
Um abraço,
Gui
Olá, Curupira,
O meu nome é Ivani e escrevo-te com muito respeito, carinho e esperança. Conheci-te através da história. Essa figura misteriosa da floresta, com os pés virados ao contrário e o coração voltado para proteger a natureza. Tu, que confundes aqueles que tentam destruir o que é sagrado.
Tenho uma enorme admiração pelo que fazes. És protetor da floresta e defensor dos animais e isso toca-me profundamente. Valorizas o que é vivo, o que é verdadeiro, aquilo que muitos preferem ignorar. Para quem só pensa em lucro, és invisível. Mas para quem sente ligação à Terra, és muito presente.
Tal como tu, também me sinto muitas vezes invisível. Comunico em Língua Gestual Portuguesa — uma língua cheia de beleza, expressão e identidade. No entanto, nem sempre é reconhecida ou respeitada. Sabes, Curupira, há quem se aproprie do que é nosso , da língua, da cultura, dos gestos sem compreender, sem cuidar, sem dar o devido valor.
Escrevo-te para te agradecer por protegeres aquilo que também me pertence: a verdade, a vida, a diversidade. Mostras-nos que o respeito não se exige, pratica-se. Que os direitos não são favores, são garantias humanas. E que existem muitas formas de comunicar, sentir e viver.
Espero que continues a desorientar os maus caminhos, a proteger os segredos da floresta, e a lembrar-nos de que existe beleza e força naquilo que o mundo tantas vezes insiste em ignorar.
Com carinho e gratidão em gesto,
Ivani